"Noite em Atenas", excelente artigo de Eric Nepomuceno publicado em Carta Maior
"E o dia a dia das gentes? Disso, quase não se fala. O que fazem os gregos, por exemplo, quando não estão em manifestações gigantescas? Eles, os gregos, quase foram consultados sobre o futuro. Quase. Nas tragédias gregas o verdadeiro protagonista é o coro. E o coro representa, reza a tradição, a voz do povo. Essa é a voz que agora quis, quer, se fazer ouvir, enquanto o poder, o sistema, faz ouvidos de mercador. Não escuta, não quer escutar. Não há tragédia grega sem catarse. Em todas elas, quem tem a palavra final é o coro.
São tempos cor de cinza na Europa. Em alguns países – Portugal, Espanha, Grécia, Itália –, são, mais que cinzentos, tempos de desalento. A linguagem fria dos analistas traz previsões geladas. Recessão, estagnação. As perspectivas indicam que talvez – talvez –, a partir do segundo semestre do ano que vem, as economias comecem, lentamente, a reagir. E que o desemprego, que se espalha com a amplidão e a rapidez das grandes maldades, persistirá, impassível, até pelo menos o final de 2013.
Está bem: em termos de tempo histórico, é menos que um suspiro. Mas e em tempo de vida, de anos de juventude, qual o tamanho dessa demora?
Os jornais se espalham em análises e previsões, contam de manifestações que reúnem milhares de pessoas, traçam projeções sobre o que pode acontecer, reviram possibilidades de alternativas, especulam sobre o que aconteceria se tal caminho fosse tomado, buscam balizas para se guiar no meio do temporal de informações desencontradas.
E o dia a dia das gentes? Disso, quase não se fala. O que fazem os gregos, por exemplo, quando não estão em manifestações gigantescas? Eles, os gregos, quase foram consultados sobre o futuro. Quase.
Recebo, de Eugenia, que vive em Atenas, uma proposta para o referendo que acabou não acontecendo. Dizia ela que, ao invés de perguntar ao povo se aceitava ou não o tal programa de ajuste econômico, o então primeiro-ministro Yorgos Papandreu, que nós chamados de Jorge e os gregos chamam de Yorgakis, Jorginho, deveria ir direto ao assunto: “Vocês preferem se matar ou serem mortos?”. Como depois se viu, acabou que ninguém perguntou nada a ninguém, e uns poucos decidiram por todos.
Leio agora mesmo, num jornal europeu, que apareceu uma nova desconfiança para os italianos: será que, em 2011, o governo do país fraudou dados da economia para conseguir receber títulos de sua dívida soberana e entrar na chamada zona do euro? Ou seja: terá o governo italiano, a exemplo do governo grego, feito artimanhas para enganar os donos do dinheiro? A pergunta aparece no mesmo dia em que se fortalece o nome de Mario Monti para a vaga de primeiro-ministro, que um bufão sinistro chamado Silvio Berlusconi deixa de ocupar.
Mario Monti é um nome que tranqüiliza o sacrossanto mercado. Da mesma forma que Papandreu, na Grécia, é substituído por outro tranqüilizante, Lucas Papademos. Da tranqüilidade das pessoas não se fala, porque não é prioridade para ninguém. A salvação é a das finanças.
E o engodo, o embuste, as artimanhas contábeis do passado? Melhor não mexer nisso. Que a Grécia falsificou números a granel, já se sabe. E a Itália? Bem, naquele 2001 o responsável pelos dados fiscais se chamava Mario Draghi, considerado um ás dos números. Hoje, ele é o presidente do Banco Central Europeu. É quem dá as cartas, ou melhor, quem distribui as cartas dadas pela dupla Nicolás Sarkozy-Angela Merkel. Homem de total confiança do sistema, teria ele, naquele distante 2001, iludido o mesmo sistema do qual agora aparece como leal escudeiro?
Mas, e os outros enganados? E o dia a dia das gentes, dos não-consultados, dos não-perguntados?
Da Grécia, Eugenia manda notícias. Conta como os políticos lançam afirmações enfáticas que eles mesmos desmentem em seguida. Conta que ninguém mais acredita em nada.
Eugenia conta que todos se sentem enganados o tempo inteiro. Que os tais acordos impostos pela União Européia, e que os políticos dizem ter sido arduamente negociados, não significam nada, porque ninguém consegue entender nada, a não ser que estão perdidos. Em todos, a certeza de que medidas duríssimas serão aplicadas sem contemplação alguma. Mais sacrifícios, mais humilhações, para que as finanças se salvem. Que finanças?
Eugenia conta que, noite dessas, quando o mundo inteiro estava com os olhos cravados na Grécia, numa praça de Atenas se juntaram trabalhadores, estudantes, funcionários públicos, artistas, donas de casa. E começaram a cantar e a rir e a dançar. Eram mais de quatrocentas pessoas, convocadas por ninguém. Todas dançando, todas cantando, todas rindo. Para espantar os demônios, para convocar a vida.
Eugenia estava na praça, naquela noite. E cantou, e dançou, e riu, reivindicando seu direito à alegria e à esperança.
De tragédia, ela e os gregos entendem.
Eugenia conta que nas tragédias gregas o verdadeiro protagonista é o coro. E que o coro representa, reza a tradição, a voz do povo. Essa é a voz que agora quis, quer, se fazer ouvir, enquanto o poder, o sistema, faz ouvidos de mercador. Não escuta, não quer escutar.
Eugenia, enfim, lembra que não há tragédia grega sem catarse. E que em todas as tragédias gregas, quem tem a palavra final é o coro."
Fonte: Carta Maior